Há
cerca de duas semanas conheci um novo e imprevisto ser para minha mitologia
pessoal: o ~feminista~ misógino. Era um estudante de esquerda que reconhecia
plenamente as opressões históricas contra a mulher – poxa, muito obrigada – e já
tinha lido toda teoria que normalmente citada sobre o tema e também aquela
muito além do que eu-reles-mortal possa sonhar que exista. Justamente, eu,
reles mortal, deveria ler mais (isso eu sempre concordo, mas por outros motivos
e em outros termos) porque “vocês, mulheres, não entenderam que o importante
é... “ e o problema, de fato, é que “as mulheres não conseguem se articular
para...”, além do mais, “as mulheres são incapazes de compreender que...” e...
opa, peraí, o parágrafo não tinha começado falando de opressão?
Para
além de compor a taxonomia sempre surpreendente da fauna e flora de gentes que
encontro no mundo, propiciar-me uma tarde de discussão infrutífera e aumentar
minha gastrite, o catalogar desse novo personagem fez-me pensar ainda mais na
incansável (e cansativa) polêmica dos homens dentro do feminismo.
Cansativa,
aliás, é pouco. Particularmente, ando me sentindo cercada. Tanto que relutei
incrivelmente sobre escrever esse post – mais um no mar da internet – sobre o
assunto!
Não
tem uma conversa sobre feminismo que eu tenha tido nos últimos tempos que não
tenha gastado muito (muito!) tempo discutindo justamente, veja só, homens.
Da mesa de bar com as amigas aos grupos de
whatsapp de coletivos de mulheres, das reuniões políticas às discussões
acadêmicas, isso sem falar em todos os posts das principais páginas que
acompanho. É como se mesmo para defendermos nosso protagonismo tivéssemos que
abrir mão dele. Angustiante.
Por
isso, mesmo relutante, resolvi escrever, aceitando o paradoxo de decidir falar
sobre algo porque não aguento mais falar sobre isso. Pelo lançamento da
campanha ElesporElas no Brasil – mais discussões. Pelo tal do feminista
misógino. E também por causa do Bolsonaro. Do Bolsonaro? Sim, do Bolsonaro. Uma
das outras notícias que vi compartilhada à exaustão essa semana foi a do
Bolsonaro (filho) propondo emenda para retirada dos coletivos de mulheres e
coletivos LGBTTs da Comissão Municipal da Mulher. Segundo o moço, assim ele
estaria defendendo a “verdadeira mulher”. Pois é, gente, mais alguém querendo
contar para a gente que existe e quem é a “verdadeira mulher”. Um homem. E o
Bolsonaro.
Confesso
que nunca tinha visto grande problema em dizer que um homem era feminista. Para
mim era tão óbvio que o protagonismo dessa luta era, tinha que ser, só podia
ser, das mulheres (cis, trans, negras, brancas, bi, hetero, homo) que nomear um
homem como feminista só me dizia que ele era um homem que 1) reconhecia a
dominação patriarcal e 2) ficaria atento para não a reproduzir 3) atuaria em
todos os espaços em que é privilegiado para conscientizar seus pares e
desconstruir seus privilégios.
Começou
a me incomodar um pouco ano passado, com o discurso da Emma Watson, o famoso.
Ainda intuitivamente, deu uma decepçãozinha de pensar que, poxa, minha
personagem de infância estava na ONU para falar de feminismo e... ela estava
indo lá falar sobre homens. E aí, de repente, mil pessoas que nunca tinham me
ouvido quando eu falava de feminismo, amigas e amigos que nunca tinham dado a
menor bola pra minhas angústias e minhas inquietações estavam falando sobre
isso e... estavam falando sobre homens. A pulga ficou atrás da orelha. Coçando.
Mas
se parasse por aí, ainda poderíamos, talvez, negociar.
Mas
não para. Nunca para, né, gente.
Fui
notando que vários homens em torno, legitimados pelo tal discurso, passavam de
apoiadores das causas a críticos delas por “não terem o espaço deles” (?! acho que
não entenderam a parte do usar seus espaços para desconstruir o machismo). E o “atuar
nos seus espaços de privilégio” acaba virando desculpa para um certo “olha, não
se preocupa se a luta pela representatividade política das mulheres não for
vitoriosa por agora, tem uns homens feministas aqui, eles vão defendendo o
direito de vocês até – ah, até algum dia”. Culmina no meu recém conhecido
feminista misógino: “olha, já que você é burra e fraca, deixa que eu vou lá e
acabo com essa cultura que acha que as mulheres são burras e fracas”
Se
antes eu pensava na possibilidade do homem feminista tendo em mente meu amigo
que – entendendo e estudando comigo questões de representatividade e
protagonismo – sabe que não pode ir a um coletivo de mulheres e se cala quando
eu discuto sobre machismo com um homem na presença dele, pois sabe que é
importante que eu o faça (mas desconstrói “piadinhas” machistas na roda dos
homens) percebi que o alcance político dessa categoria vai um pouco além. E é
bem mais perigoso que eu pensava. As consequências estão aí, estão acontecendo,
aqui e agora. Estamos gastando mais tempo falando de homens no feminismo do que
das nossas pautas mais caras e importantes. Estamos debatendo internamente
antes o lugar do homem no feminismo do que a – ainda – falta de
representatividade das pautas trans (para ficar só no caso mais grave dessa
carência). Estamos perdendo tempo, fôlego e energia em discussões entre
mulheres sobre se os homens podem ou não ser feministas, enquanto ~cereja do
bolo~ surge o Bolsonaro dizendo o que é uma “mulher de verdade” a ser defendida
pela política pública da cidade do Rio de Janeiro.
Eu
sei que não era no Bolsonaro que a Emma Watson estava pensando. Nem a ONU
Mulheres. Nem ninguém em sã consciência. Espero que nem o próprio Bolsonaro se
pense incluído nesse discurso. Mas, se a gente diz que os homens podem assumir
frente de pautas feministas, e o Bolsonaro resolve que vai se arvorar como
defensor dos direitos da “mulher de verdade”, como a gente vai explicar para
ele que não é assim que funciona? Como a gente vai explicar que não era nele
que a gente estava pensando e que isso aí de “mulher de verdade” ele cante no
samba, se não puder evitar, e não acredite que existe - de jeito nenhum?
O
feminismo atual, quando colocado assim no singular, já tem problemas suficientes
de racismos, homofobias, transfobias internos para ainda correr esse risco . Os
feminismos atuais, no plural, única forma como os acredito, já tem pautas e
desafios suficientes para perder tanta energia em debates internos sobre,
justamente, protagonismo masculino.
Isso
não é ser contra homens. Não é segregacionista ou separatista.
É só lembrar
que, gente, nos feminismos, não era para a gente estar preocupado com as
mulheres?
(Mesmo
porque, como sempre converso com meu amigo que – mesmo que eu não o chame mais
de feminista – segue sensibilizado para as questões de gênero, atuante em seus
espaços de privilégio e ótimo interlocutor pra todas essas confusões da vida:
um homem que realmente entendeu algo sobre as opressões e os feminismos, ah,
não precisa ser chamado de feminista para fazer nada. Não reivindica um papel,
porque sabe que tem muitos que nos são negados. Ele não vai ficar nem tentando
explicar às mulheres –tolinhas - como se
faz. Vai fazer tudo que puder. Nos espaços dele. Convenhamos, espaço não é o
que lhe falta.)
Tô chateada porque eu só achei esse texto agora, quando estou escrevendo um texto sobre o mesmo assunto... Sensacional! Você tocou em pontos cruciais sobre o tema, e falou muito bem sobre eles! Gostaria que o mundo lesse seu post!
ResponderExcluirPoxa, obrigada! Andava meio desanimada com o blog (e a vida) mas esse tipo de resposta e troca dão ânimo pra seguir. Valeu, guria! Manda seu texto quando acabar. Vamos trocando!
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